Olá, aventureiros e aventureiras! Um artigo publicado semana passada no Journal of Vertebrate Paleontology pelos paleontólogos Alessandro Paterna e Andrea Cau descreveu novos materiais cranianos de carcarodontossaurídeos encontrados em Kem Kem, além de discutir sobre outros carcarodontossaurídeos marroquinos desse grupo geológico e sobre a sua abundância.
Nesse contexto, temos Sauroniops pachytholus, um carcarodontossaurídeo do Grupo Kem Kem obtido através da doação de uma pessoa que o comprou de um comerciante marroquino de fósseis. O único espécime que temos certeza que pertence ao táxon é seu holótipo, MPM 2594, um frontal esquerdo quase completo com 18,6 cm de comprimento que provavelmente pertence a um indivíduo maturo. O táxon foi inicialmente descrito por Cau et al. (2012) como um carcarodontossaurídeo indeterminado e só recebeu um nome na reavaliação de Cau et al. (2013). O nome do gênero significa “Olho de Sauron”, referenciando a obra “O Senhor dos Anéis” de Tolkien e ao fato de que o único osso descoberto é um osso que situa-se logo acima da órbita. O epíteto específico significa “domo espesso”, em referência à espessura do domo do osso preservado.
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Foto do holótipo de Sauroniops pachytholus em vista (A) dorsal, (B) ventral, (C) lateral esquerda, (D) anterior, (E) medial e (F) posterior. Imagem retirada de Cau et al. (2012). |
Um outro carcarodontossaurídeo de Kem Kem que também possui um frontal preservado é (possivelmente) Carcharodontosaurus saharicus e, ao examinarem se S. pachytholus e C. saharicus eram sinônimos ou não, Cau et al. (2012) encontraram as seguintes diferenças anatômicas entre eles:
“[Sauroniops tem] processos nasais completamente separados medialmente; presença de facetas pré-frontais e lacrimais distintas (o que sugere a presença de um osso pré-frontal não vestigial); faceta lacrimal que é mais larga anteriormente; faceta articular pré-frontal subtriangular (em vez de arredondada) [...]; área em forma de sela entre a faceta lacrimal e a margem ântero-medial da fossa supratemporal; ausência de superfície anterior profundamente invaginada da fossa supratemporal (e plataforma correspondente); ausência de esfenetmóide e mesetmóide ossificados.”
Eles fizeram comparações com estudos anteriores sobre variabilidade ontogenética e intraespecífica em Tyrannosaurus e concluíram que não é isso que ocorre entre C. saharicus e S. pachytholus. Posteriormente, Cau et al. (2013) forneceram mais evidências anatômicas que distinguem MPM 2594 de C. saharicus e de outros carcarodontossauros — contudo, como não acho que vale a pena comentar sobre cada característica, recomendo que leia a publicação.
Apesar disso, em 2020, Ibrahim e coautores discordaram dos trabalhos anteriores e propuseram uma sinonímia entre Carcharodontosaurus saharicus e Sauroniops pachytholus, com o primeiro tendo prioridade sobre o segundo. Todavia, as razões que sustentam essa sinonímia são baseadas em más compreensões e interpretações dos fósseis e do que foi escrito na descrição e redescrição de Sauroniops — além de que os autores simplesmente ignoraram certos elementos importantes —, como discutido pelo próprio Andrea Cau em seu blog e agora no novo artigo.
Tamanho de Sauroniops
Em 2013, Andrea Cau e sua equipe estimaram MPM 2594 em uma faixa de 10-12 metros de comprimento. Posteriormente, Ibrahim e coautores utilizaram do comprimento “exposto sobre teto craniano dorsal posterior à sutura nasal” do frontal do nosso querido Olho de Sauron para determinar que ele tem 60% do tamanho dos frontais do “holótipo” de Carcharodontosaurus saharicus (alguns parágrafos abaixo eu demonstro o porquê desses fósseis egípcios de Stromer não serem o holótipo de nada) e do “neótipo” (comentarei sobre esse espécime em posts futuros) do mesmo táxon. Dessa forma, assumindo que esses 60% representem também a disparidade de tamanho entre o “neótipo” de Carcharodontosaurus e MPM 2594, e que o “neótipo” do primeiro possui ~12 metros de comprimento, podemos concluir que o espécime-tipo de Sauroniops provavelmente tinha um comprimento de ~5 metros. Todavia, Paterna e Cau questionaram o método de Ibrahim et al. e utilizaram como exemplo para provar seu ponto o também carcarodontossaurídeo Meraxes gigas, que tem um crânio completo. Ao aplicarem a metodologia, eles descobriram que o crânio do Meraxes acaba tendo 50% do comprimento estimado do crânio do “neótipo” de C. saharicus, que é um valor inferior ao da realidade (79-89%, segundo eles). Os autores estimaram que o provável comprimento do crânio do holótipo de Sauroniops está na faixa de 140-169 centímetros utilizando os métodos de Canale et al. (2022).
De qualquer forma, decidi fazer minha própria estimativa do comprimento do corpo do espécime-tipo de Sauroniops. Entretanto, é de relevância comentar que, como S. pachytholus é extremamente fragmentário, qualquer estimativa deve ser olhada com ceticismo e não deve ser levada como o tamanho definitivo ou o mais correto — e isso serve para outros muitos táxons de organismos conhecidos apenas no registro fóssil. Ademais, destaco: são estimativas para um indivíduo, não para a espécie.
Antes de tudo, fui dar uma olhada em Cau et al. (2012-13) para ver os parentes mais próximos de Sauroniops. Nas duas análises filogenéticas, os táxons mais relacionados a S. pachytholus são Eocarcharia dinops e Acrocanthosaurus atokensis, com o primeiro inclusive caindo como táxon irmão de Sauroniops em uma delas. No entanto, E. dinops é conhecido por indivíduos fragmentários, embora adultos, com alguns sem sobreposição entre si ou com o Sauroniops, e os que tem, majoritariamente não tiveram suas medidas mostradas. O único espécime que pode ser sobreposto a MPM 2594 e teve algumas de suas medidas reveladas é o frontal esquerdo MNN GAD10, que mede 10,2 cm de comprimento. Nenhuma estimativa de comprimento corporal foi fornecida exatamente para o indivíduo que era composto por esse frontal, mas Sereno & Brusatte (2008) forneceram uma faixa de 6 a 8 metros de comprimento para a espécie. Logo, assumindo que MNN GAD10 possuía 6 metros, MPM 2594 provavelmente tinha ~10,9 m de comprimento. Assumindo que tinha 8, então o holótipo de Sauroniops provavelmente tinha ~14,8 metros de comprimento.
Utilizei também o espécime de Acrocanthosaurus atokensis NCSM 14345, um dos maiores já encontrados, para uma estimativa alternativa. O espécime foi estimado em 11,5 metros de comprimento por Eddy & Clarke (2011) e tem um frontal direito que mede 19,1 centímetros de comprimento. Com essas informações, eu obtive um MPM 2594 com ~11,1 metros de comprimento.
Meus cálculos foram feitos através da clássica regra de 3. Para isso, o método assume que ambos os animais utilizados possuem as mesmas proporções corporais, o que muitas vezes não é o que ocorre, ainda mais entre indivíduos que não são nem da mesma espécie. Apesar disso, já dá para nos fornecer uma base, e essa base nos mostra que o holótipo de Sauroniops potencialmente tinha mais de 10 metros de comprimento, corroborando com a interpretação de que se trata de um animal de porte comparável ao dos maiores carcarodontossauros, pelo menos em comprimento.
Paleobiologia
Cau et al. (2013) descrevem os ornamentos do holótipo de Sauroniops como semelhantes às proeminências de abelissaurídeos derivados como Skorpiovenator bustingorryi, Carnotaurus sastrei, Aucasaurus garridoi e Abelisaurus comahuensis, porém com uma superfície menos ornamentada e eminências dorsais localizadas mais ântero-dorsalmente à curva da órbita, logo acima da faceta pré-frontal-lacrimal. Essas semelhanças podem indicar que um comportamento agonístico de cabeçadas estava presente em Sauroniops, assim como acontece nos paquicefalossaurídeos e nos próprios abelissaurídeos. Embora esse tipo de comportamento tenha sido contestado em ambos os grupos (por exemplo, veja Goodwin & Horner (2004) e Carpenter (1997) para paquicefalossauros e Mazzetta et al. (2009) e Chure (1998) para abelissauros), estudos recentes propõem que cabeçadas eram possíveis de terem sido realizadas por esses animais (por exemplo, veja Peterson & Vittori (2012), Peterson et al. (2013) e Snively & Theodor (2011) para paquicefalossauros e Delcourt (2018) para abelissauros).
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Restauração simples de dois Sauroniops pachytholus desferindo uma cabeçada um no outro. Ilustração de Henrique Santos (usada com permissão). |
Outra coisa que Cau e coautores também citam é que algumas características presentes em MPM 2594 estão relacionadas ao reconhecimento visual entre espécies simpátricas intimamente relacionadas — o que teria ajudado S. pachytholus e outros carcarodontossauros, como C. saharicus, a se reconhecerem — e à seleção sexual mútua. Entretanto, a primeira hipótese não é embasada em evidências que a tornam viável — veja Hone & Naish (2013) —, embora ela não possa ser descartada.
Novos carcarodontossaurídeos
Paterna & Cau (2022) descreveram dois materiais esqueléticos até então inéditos da parte inferior de Kem Kem, ambos incompletos: uma maxila esquerda, OPH2028a, e um jugal esquerdo, OPH2028b. Eles identificaram os espécimes como carcarodontossaurídeos distintos de Carcharodontosaurus e não descartaram a possibilidade de pertencerem ao mesmo indivíduo. Os novos espécimes podem ser de S. pachytholus, mas não há sobreposição entre eles, o que significa que nenhuma comparação pode ser feita para termos noção. Como OPH2028a e OPH2028b não podem ser atribuíveis a Carcharodontosaurus, eles (juntamente a Sauroniops, se considerarmos que não são o mesmo táxon) falseam a hipótese de que C. saharicus era o único terópode carcarodontossauro a vagar pelos territórios cretácicos do Grupo Kem Kem.
Nota sobre a taxonomia de Carcharodontosaurus
Tem sido repetido em alguns artigos científicos (inclusive em Paterna & Cau) a expressão “holótipo de Carcharodontosaurus”, se referindo ao material egípcio de Stromer ou aos dentes de Depéret & Savornin. Entretanto, de acordo com o artigo 73.1.3 do Código Internacional de Nomenclatura Zoológica (ICZN), “O holótipo de um novo táxon nominal de um grupo de espécies só pode ser definido na publicação original e pelo autor original”. E é aí que tá: nenhum dos dois dentes argelinos descritos por Depéret e Savornin usados para erguer a espécie “Megalosaurus saharicus” (agora Carcharodontosaurus saharicus) foi designado como holótipo da espécie, o que os torna síntipos (artigo 73.2 do ICZN: “para um táxon nominal de grupo de espécies estabelecido antes de 2000 [Art. 72.3] todos os espécimes da série tipo são automaticamente síntipos se nem um holótipo [Art. 72.1] nem um lectótipo [Art. 74] foram definidos.”). Ok, os dentes, mas e os espécimes de Stromer? Stromer apenas nomeou o gênero Carcharodontosaurus, mas a espécie já existia antes, e como um holótipo é designado somente na publicação original de nomeação da espécie, Stromer não pôde definir um.
Agradecimentos
Eu gostaria de agradecer ao paleoartista iniciante Henrique Santos (siga-o no Twitter) por ter feito aquela arte pensando em contribuir para o blog e por ter me permitido usá-la em tal.
Referências
Chure, Daniel J. (1998). "On the orbit of theropod dinosaurs". Gaia. 15: 233–240.
International Commission on Zoological Nomenclature
Stromer, E. (1931). "Wirbeltiere-Reste der Baharijestufe (unterestes Canoman). Ein Skelett-Rest von Carcharodontosaurus nov. gen." Abhandlungen der Bayerischen Akademie der Wissenschaften, Mathematisch-naturwissenschaftliche Abteilung, 9(Neue Folge): 1–23.