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Restauração em vida de um... Oxalaia quilombensis? Spinosaurus aegyptiacus? Spinosaurus quilombensis? Spinosaurinae indet.? Paleontografia de Orribec (usada com permissão). |
O debate sobre espinossaurídeos está na boca do público voltado à paleontologia (como exemplo, podemos citar o Paleotwitter) e acadêmico. Nos últimos anos, diferentes publicações sugerindo diferentes estilos de vida para o africano Spinosaurus têm causado briga de faca no meio não acadêmico (e quiçá acadêmico). Embora seja atraente, não é sobre isso que este post tratará, mas sim da taxonomia dos espinossaurídeos, mais especificamente a do brasileiro Oxalaia quilombensis.
Ontem, o excelente paleoartista Brennon Valdez, cujo nome de usuário no Twitter é Hell Creek Enthusiast (e que, no momento, está aceitando comissões), publicou uma thread — na mesma rede social — na qual ele se propôs a revisar a taxonomia de espinossaurídeos norte africanos. Brennon fez muitos levantamentos com os quais eu entro em concordância, e endosso a leitura da thread, embora eu preferisse que fosse feito um debate melhor dentro da academia científica.
Ele comentou pontos discutíveis sobre O. quilombensis, mas antes de prosseguirmos, uma contextualização:
História do Oxalaia (2011-2020)
Oxalaia quilombensis foi inicialmente descrito por Kellner et al. (2011), que designaram como holótipo duas pré-maxilas fusionadas (MN 6117-V). Kellner e colaboradores também encaminharam a O. quilombensis o espécime MN 6119-V, um pedaço isolado de uma maxila esquerda. Notavelmente, o holótipo foi encontrado in situ, condição rara no local onde foi descoberto (Laje do Coringa, Formação Alcântara) por causa do poder destrutivo das fortes marés.
Kellner et al. (2011) forneceram as seguintes autapomorfias para Oxalaia quilombensis:
“expansão máxima da porção distal da pré-maxila entre o terceiro e o quarto alvéolo; projeção anterior muito fina das maxilas entre as pré-maxilas na região palatal; presença de dois dentes de substituição associados com o terceiro dente funcional; [...] porção ventral da pré-maxila muito esculpida.”
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Holótipo de Oxalaia quilombensis em (A) vista lateral esquerda, (B) lateral direita, (C) dorsal e (D) ventral um pouco oblíqua. Imagem retirada de Sales & Schultz (2017). |
Em 2017, Sales & Schultz, ao revisarem os táxons de espinossaurídeos brasileiros nomeados, rejeitaram a diagnose anterior de Kellner et al. e providenciaram uma nova com base nas seguintes autapomorfias:
“posse de dois dentes de substituição associados ao pm3 funcional e a condição esculpida da porção palatina das pré-maxilas.”
Quem ainda não percebeu, são duas das autapomorfias listadas por Kellner e colaboradores, ou seja, Sales & Schultz removeram as outras duas por não se mostrarem únicas.
Em 2018, houve o fatídico incêndio no Museu Nacional, onde estavam alojados os fósseis de O. quilombensis, que foram provavelmente destruídos de acordo com uma reportagem da época. Atualmente, não sei se a informação procede e se os espécimes foram recuperados.
Apesar disso, Smyth et al. (2020) removeram a respectiva primeira autapomorfia supracitada de Sales & Schultz, alegando que a mesma condição está presente em Irritator challengeri, sobrando como autapomorfia a única que restou. Sendo assim, Smyth e colaboradores não consideraram Oxalaia como um gênero válido e o sinonimizaram com Spinosaurus aegyptiacus.
Curiosamente, o primeiro autor do estudo supracitado, Robert Smyth, também foi o primeiro autor do artigo que descreveu “Ubirajara jubatus”, dinossauro brasileiro que foi levado ilegalmente para a Alemanha. O segundo autor é o Nizar Ibrahim, famoso pelas suas publicações acerca do Spinosaurus, e que tem posicionamentos colonialistas (admito, porém, que esta informação provém de evidências anedóticas). Ibrahim também foi, certo dia, desonesto, pois escreveu um tweet que continha informações supostamente retiradas de um artigo no qual teve ele como um coautor, mas que, na realidade, aquilo não estava em canto algum da publicação. Perdi o tweet, mas o artigo é este. O terceiro autor, David Martill, claramente possui posicionamentos em prol do colonialismo científico e também foi um coautor do artigo de descrição de “U. jubatus”. Onde quero chegar com isso tudo? É melhor eu não expressar em palavras.
Apontamentos do Brennon Valdez
O primeiro levantamento que queria abordar aqui é sobre o seguinte texto:
“Há vários anos ele [Oxalaia] é citado como um dos maiores terópodes brasileiros conhecidos (embora nenhuma estimativa numérica seja dada aqui). Embora seja verdade, apesar da natureza fragmentária do espécime, sua interligação com o Spinosaurus viria em Smyth et al. 2020, que colocou Oxalaia não apenas no gênero, mas na espécie S. aegyptiacus. Isto é problemático por várias razões.”
Posterior a isso, Valdez brevemente citou que a morfologia do holótipo de Oxalaia está semelhantemente presente em outros espinossaurídeos tanto quanto em “Spinosaurus”. Quero eu, aqui, comentar um outro problema substancial em Smyth et al. (2020): os supostos materiais de Spinosaurus usados nesse estudo para sinonimizar Oxalaia no táxon africano não são de Spinosaurus. Quer dizer, eles podem ser de Spinosaurus, mas não há sobreposição entre esses materiais e o que de fato é Spinosaurus (veja a thread do Brennon), o que torna difícil essa atribuição a este último.
Se não são Spinosaurus, são o quê? Como notado por Lacerda et al. (2021), são espinossauríneos indeterminados. O mesmo artigo também demonstra que o holótipo de Oxalaia difere desses espinossauríneos.
O segundo levantamento de Brennon é o seguinte:
“É postulado aqui, embora informal, que Oxalaia deve ser considerado como um espinossauro indeterminado - e isto ignora que o rostro que muitos usam para representar o Spinosaurus também não foi provado com segurança como pertencente ao gênero.”
Dessa vez, eu me contraponho a ele. Lacerda e colaboradores forneceram como potenciais autapomorfias de O. quilombensis a rugosidade do palato — já percebida por Kellner et al. (2011) e Sales & Schutz (2017) — e o formato do processo pré-maxilar ântero-medial, o que significa que Oxalaia quilombensis é provavelmente um táxon válido e não um indeterminado. Mais uma coisa que eu gostaria de comentar é que Isasmendi et al. (2022) apoiaram as conclusões de Lacerda et al. (2021) e, mais ainda, sugeriram que Oxalaia está mais relacionado a Irritator do que a Spinosaurus, tendo em vista a posição da narina externa — o que torna ainda mais difícil a sinonímia entre os dois.
Com isso, mesmo que aqueles táxons indeterminados de Spinosaurinae do norte da África realmente sejam de Spinosaurus, não são suficientes para provar que Oxalaia é congenérico ou coespecífico com Spinosaurus ou Spinosaurus aegyptiacus, então pode relaxar sossegado, Brenninho ; )
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Por fim, uma reconstrução esquelética de Oxalaia quilombensis que criei. Ele, com seus veneráveis 10 metros, observa curiosamente a paleontóloga Aline Ghilardi, que posa para uma foto ao lado do incrível animal. Não se esqueça de me seguir no DeviantArt, se quiser. |
Agradecimentos
Gostaria de agradecer aos paleontólogos Mauro Lacerda e Erik Isasmendi por terem me fornecido, respectivamente, um link e um PDF para acesso completo aos seus artigos (caso Lacerda et al. ainda não esteja acessível através do Sci-hub, está aqui em forma de upload no Google Drive, e Isasmendi et al. igualmente aqui). Também agradeço ao Orribec por ter me permitido usar sua paleoarte para este post (aqui um link para o tweet original da arte).
Referências
Andrade, Rodrigo de Oliveira (2021) Museu alemão se recusa a devolver fóssil contrabandeado do Brasil
Erik Isasmendi, Pablo Navarro-Lorbés, Patxi Sáez-Benito, Luis I. Viera, Angelica Torices & Xabier Pereda-Suberbiola (2022): New contributions to the skull anatomy of spinosaurid theropods: Baryonychinae maxilla from the Early Cretaceous of Igea (La Rioja, Spain), Historical Biology
Kellner, Alexander WA. et al. A new dinosaur (Theropoda, Spinosauridae) from the Cretaceous (Cenomanian) Alcântara Formation, Cajual Island, Brazil. Anais da Academia Brasileira de Ciências [online]. 2011, v. 83, n. 1
Lopes, Reinaldo José (2018). "Entenda a importância do acervo do Museu Nacional, destruído pelas chamas no RJ". Folha de S.Paulo
Mauro B.S. Lacerda, Orlando N. Grillo & Pedro S.R. Romano (2021): Rostral morphology of Spinosauridae (Theropoda, Megalosauroidea): premaxilla shape variation and a new phylogenetic inference, Historical Biology
Povo, O. (2020). "Tem gente, em pleno século XXI, pilhando o nosso patrimônio", diz paleontólogo cearense sobre tráfico de fósseis. O POVO
Sales MAF, Schultz CL (2017) Spinosaur taxonomy and evolution of craniodental features: Evidence from Brazil. PLoS ONE 12(11): e0187070
Smyth, Robert S.H.; Ibrahim, Nizar; Martill, David M. (October 2020). "Sigilmassasaurus is Spinosaurus: a reappraisal of African spinosaurines". Cretaceous Research. 114: 104520
Smyth, Robert S. H.; Martill, David M.; Frey, Eberhard; Rivera-Silva, Hector E. & Lenz, Norbert (December 2020). "WITHDRAWN: A maned theropod dinosaur from Brazil with elaborate integumentary structures". Cretaceous Research