Em 2016, os pesquisadores Sebastián Apesteguía, Juan Daza, Tiago Simões e Jean Rage descreveram uma nova espécie de escamado proveniente do Grupo Kem Kem. O “fóssil”, que está sob o catálogo MNHN.F.MRS51.1, se consiste em um dentário esquerdo incompleto com dentes, faltando apenas a porção sinfisial e a mais posterior, e foi usado para erguer o táxon Jeddaherdan aleadonta. O epíteto genérico significa “avô de Uromastyx” (gênero intimamente relacionado e relacionado até demais, como vocês verão), enquanto o epíteto específico significa “dentes de dados”, em referência à dentição em forma de cubo do holótipo.
Na coleção do museu onde estava guardado, MNHN.F.MRS51.1 (o único espécime conhecido até os dias de hoje) estava classificado erroneamente como um peixe (pormenorizo: aqueles animais que os ictiólogos estudam), mas os autores supracitados conseguiram o identificar como um réptil escamado, mais especificamente como uma iguana do clado Acrodonta. Podemos ir mais fundo: a análise filogenética mais adequada ao conjunto de dados de Apesteguía et al. (2016) encontrou Jeddaherdan como táxon irmão de Gueragama sulamericana, dentro de Uromastycinae, cujo outro táxon restante é o próprio Uromastyx.
Por ser o mais antigo membro africano de Acrodonta e um dos únicos do Cretáceo, Apesteguía concluíram que J. aleadonta representa uma ligação biogeográfica entre acrodontanos cretácicos asiáticos (representados por Xianglong zhaoi e Bharatagama rebbanensis) e sul-americanos (representados por Gueragama).
Apesar de tudo, os pesquisadores Romain Vullo, Salvador Bailon, Yannicke Dauphin, Hervé Monchot e Ronan Allain forneceram, recentemente, uma revisão do material de Jeddaherdan aleadonta. Interessantemente, Vullo et al. (2022) notaram que os fósseis certamente cretácicos encontrados na localidade de Gara Tabroumit (mesma onde Jeddaherdan foi achado) apresentam uma cor marrom a marrom-avermelhado escuro, enquanto MNHN.F.MRS51.1 possui uma cor rosa esbranquiçada, e que são química e estruturalmente mais semelhantes entre si do que entre o espécime-tipo de J. aleadonta.
Na verdade, os autores foram mais além: eles conseguiram identificar através da falta de riqueza de elementos de terra raros (REE elements), que o holótipo de Jeddaherdan aleadonta não é do Cretáceo, mas sim do final do Quaternário! Com isso, podemos concluir que no máximo ele é um subfóssil, e não um fóssil. Ademais, essa descoberta vai ao encontro de outros resultados deles quanto à anatomia do táxon: “Jeddaherdan é indistinguível de Uromastyx”. Ainda sobre anatomia, a identificação do holótipo de J. aleadonta como um dentário esquerdo cujas únicas partes que faltam são a sua sínfise e a sua região mais posterior é simplesmente errada, pois trata-se de um fragmento de dentário direito. Com isso, houveram várias interpretações anatômicas errôneas do material na publicação original.
Tudo que foi citado acima levaram Vullo et al. a sinonimizarem Jeddaherdan aleadonta ao gênero Uromastyx. Embora a espécie Uromastyx nigriventris seja a única vivendo na região de Kem Kem nos dias de hoje, os autores preferiram atribuir J. aleadonta a Uromastyx sp.
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Aqui uma foto de Uromastyx nigriventris disponibilizada em CC BY 4.0 por Christoph Moning na Wikimedia Commons. |
Um caso semelhante aconteceu com o escamado indiano Tikiguania estesi, escavado na Formação Tiki e originalmente pensado como pertencente ao Triássico tardio, mas mais tarde demonstrado como sendo do Cenozóico tardio. A interpretação errada da idade de Tikiguania levou a hipóteses paleobiogeográficas erradas, “simples e objetivamente” (como diria Jones Manoel). O mesmo ocorreu com Jeddaherdan. Sendo assim, Vullo e coautores alegam que é necessário uma maior cautela ao se examinar a superfície de restos ou microrestos de vertebrados que estão livres de matriz.
Agradecimentos
Gostaria de agradecer a Romain Vullo, primeiro autor de Vullo et al. (2022), por ter me fornecido o PDF do artigo em pre-proof. O PDF está disponibilizado gratuitamente aqui, pois sou contra o acesso restrito a artigos científicos, os quais são o principal meio de se fazer ciência academicamente, e porque artigos desse ano não estão acessíveis através do fantástico Sci-hub.
Referências
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